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Da vida à literatura: breve reflexão sobre um dilema que cerca o escritor

Ficção autobiográfica sempre existiu. São incontáveis os escritores que se utilizaram de experiências pessoais para elaborar suas histórias. Nos últimos anos, exacerbou-se essa tendência, tendo inclusive ganhado nome próprio: autoficção. O conceito é polêmico, alvo de muitas teorizações. Mas, de modo geral, trata-se do escritor que usa episódios de sua vida para criar uma obra literária. Ainda que tenha variados graus de fidelidade factual, a identidade entre autor, narrador e personagem quase sempre pode ser observada. Dizem que essa ficção sobre si próprio é sintoma do egocentrismo contemporâneo. É uma possibilidade. Porém, tendo a crer que os escritores atuais estão falando mais sobre si porque aparentemente só é possível escrever com profundidade sobre coisas que vivemos de perto. Pessoalmente, penso nisso quando estou envolto nos meus pequenos desejos de escrever. Quando tento escrever algo realmente significativo surge um dilema em forma de pergunta. É possível escrever algo real...
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Das Lehrerzimmer: uma resposta realista para o idealismo ingênuo

Sempre que aparece um filme novo na praça abordando as complexas relações que se operam dentro do ambiente escolar, me sinto compelido a assisti-lo. Não foi diferente com Das Lehrerzimmer (A Sala dos Professores, 2023), filme alemão dirigido por Ilker Çatak.  Trata-se aqui da história de Carla, uma professora de Matemática recém-chegada a uma nova escola. Diante dos roubos frequentes que ocorrem no ambiente, ela decide fazer algo a respeito com o intuito de descobrir os responsáveis. Porém, ao fazer isso, a novata descobre que o problema é bem mais profundo do que se imaginava. Confesso que por vezes, enquanto assistia, fiquei irrequieto e inconformado com as atitudes da jovem professora. De modo geral, ela transparece uma imagem de clareza e afetuosidade. Contudo, para além dessas belas qualidades, pode-se ver que seu principal problema é um idealismo ingênuo, uma crença injustificada na remissão da humanidade. Ressalte-se: não faço parte do grupo que já vaticinou o fracasso da i...

O Lula de Gabriela Biló: uma apreciação sobre as múltiplas interpretações

Curiosa a capacidade do Twitter em pautar o debate público brasileiro. Apesar de ser uma rede social menor que o Facebook, o Instagram e o WhatsApp, o Twitter concentra boa parte da massa opinativa do país (políticos, jornalistas, artistas, ativistas, etc). Com isso, quase que diariamente surgem discussões das mais diversas nesse palco virtual. Seguindo a tendência dos tempos líquidos em que vivemos, esses debates tem o poder de mobilizar a atenção durante dois ou três dias no máximo, sendo logo substituídos por um novo tema polêmico. Porém, o pouco tempo não impede que os debates sejam acalorados e até mesmo extremados. Pelo contrário, a necessidade urgente de abordar o tópico antes que ele não seja mais relevante é um incentivo para simplificações, acusações e trocas de insultos. Essa contextualização inicial é apenas para que os não iniciados no Twitter compreendam o ambiente pouco aprazível no qual ocorreu o mais recente debate. Tudo começou com a escolha de uma fotografia da Gabri...

Nick Kyrgios: o anti-herói das regras não escritas do tênis

Escrevo esse texto após a partida entre o australiano Nick Kyrgios e o grego Stefanos Tsitsipas. Nesse embate tenso, o australiano venceu por 3 sets a 1, isso somente depois de muita polêmica envolvendo o comportamento dos dois atletas durante o jogo. Nick Kyrgios é uma espécie de anti-herói do tênis. Esse tipo de figura é cada vez mais comum na era do entretenimento. Afinal, quem nunca torceu ou no mínimo ficou curioso de acompanhar um personagem problemático? Um ser humano complexo, com seus belos acertos e também seus desvios de caráter? Lembro, por exemplo, da série The Sopranos e da trilogia The Godfather . Por vezes, mesmo sabendo do comportamento criminoso dos personagens, me via fascinado por eles. É o que acontece com Nick Kyrgios, o anti-herói do tênis. Num esporte elitista, que preserva o bom comportamento e o respeito a uma série de regras não escritas, Kyrgios, seja por tática ou por instinto, costuma ignorá-las. Não foi diferente nesse jogo contra Tsitsipas pelo Torn...

Crônica da virada: O carinho sufocante de um gato

Portas fechadas, todos saíram. Acordo nesse último dia do ano como se não fosse um dia especial, isto é, um dia que marca o encerramento de mais uma etapa nas nossas vidas. Mas a bem da verdade, se quisermos ser preciosistas (e eu adoro ser esse tipo de pessoa), hoje é mesmo um dia qualquer. Aliás, a noção de dia, mês, ano, virada de ano... É tudo uma mera convenção que criamos para suportar nossa curta estadia por aqui. Niilista, não? Eu já fui muito esse tipo de pessoa. Atualmente, bem menos. Ser do contra, aprofundar o olhar para tudo que se observa quase sempre soa pedante e se torna extremamente cansativo. Mas isso não deveria vir ao caso, perdoem essa enorme digressão. O que vem ao caso é que acordei hoje pela manhã e, como estava sozinho, percebi que não havia motivo para me levantar. Ledo engano! Do lado de fora um morador recém-chegado estava ilhado. Trata-se de um gato que passou a compartilhar o espaço conosco há apenas duas semanas. Ele andou envolta da casa miando (quase g...

Artigo de opinião: Retrocedemos

A pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil em março de 2020 e continua nos afetando até os dias atuais. No início, algumas pessoas acreditavam que iríamos aprender com a doença e nos tornar pessoas melhores. Contudo, na minha visão, isso não ocorreu. Pelo contrário, no contexto da pandemia, vimos muitas demonstrações de egoísmo, de ignorância e de maldade humana. Apesar da distribuição do auxílio emergencial e da doação de cestas básicas aos mais pobres durante o processo de agravamento da Covid-19, essas ações foram insuficientes e não conseguiram impedir o aumento da pobreza no Brasil. De acordo com dados do economista Daniel Duque, da Fundação Getulio Vargas (FGV), entre 2019 e 2021, a pobreza cresceu em 24 das 27 unidades da federação. Além disso, mesmo o Coronavírus causando a morte de milhares de pessoas, vários indivíduos e até mesmo governantes políticos se utilizaram de discursos negacionistas para contestar o distanciamento social, o uso de máscara e a vacinação. Em relação a es...

A vila que habita em nós: uma triste premonição

Hoje pela manhã, pouco depois de ter acordado, ouvi um radialista local falando sobre a rebelião que havia ocorrido no maior presídio aqui do Rio Grande do Norte. Ele era taxativo em suas análises: falta leis mais rigorasas, falta polícia melhor equipada, há excesso de direitos humanos e regras obsoletas impedem que os pais coloquem seus filhos desde cedo para trabalhar. Por fim, concluiu de forma assertiva dizendo-se a favor dos militares no poder. Confesso que pensei em mandar uma mensagem para ele, pedir que ao menos lesse um pouco de história. Especialmente dos recentes anos 60 e 70, quando os militares chegaram ao poder para "salvar" o país da violência e da corrupção, mas acabaram impondo uma ditadura autoritária que durou mais de duas décadas. Porém, desisti. Talvez ele, homem de bem, não compreendesse minhas honestas intenções. Nisso, refleti sobre o que leva tantas pessoas a, assim como ele, pensarem dessa maneira. Falta de educação consistente? Medo irrefletido da v...