Pular para o conteúdo principal

Da vida à literatura: breve reflexão sobre um dilema que cerca o escritor

Ficção autobiográfica sempre existiu. São incontáveis os escritores que se utilizaram de experiências pessoais para elaborar suas histórias. Nos últimos anos, exacerbou-se essa tendência, tendo inclusive ganhado nome próprio: autoficção. O conceito é polêmico, alvo de muitas teorizações. Mas, de modo geral, trata-se do escritor que usa episódios de sua vida para criar uma obra literária. Ainda que tenha variados graus de fidelidade factual, a identidade entre autor, narrador e personagem quase sempre pode ser observada.

Dizem que essa ficção sobre si próprio é sintoma do egocentrismo contemporâneo. É uma possibilidade. Porém, tendo a crer que os escritores atuais estão falando mais sobre si porque aparentemente só é possível escrever com profundidade sobre coisas que vivemos de perto.

Pessoalmente, penso nisso quando estou envolto nos meus pequenos desejos de escrever. Quando tento escrever algo realmente significativo surge um dilema em forma de pergunta. É possível escrever algo realmente original, autêntico e profundo sem ter vivido essa experiência? Por exemplo: não me vejo minimamente provido de condições para contar a história de um chinês sem nunca ter ao menos ido à China. Obviamente, há muito material escrito e filmado sobre esse país, mas estaria apenas construindo uma história moldada por perspectivas alheias.

A solução que resta é escrever sobre minha própria experiência, única coisa que talvez conheça e sobre a qual tenho a chance de dizer algo minimamente significativo. Mas aí também residem muitos empecilhos. Primeiramente, não é fácil extrair de um cotidiano modorrento coisas extraordinárias. Não obstante, é possível, haja vista que a literatura se pauta justamente por isso: encontrar beleza e sentido nos momentos simples da vida. O problema é a exposição. Até que ponto um escritor está disposto a revelar traços de sua identidade e despir-se das convenções, apresentando suas neuroses e traumas diante do público?

Obviamente, sempre é possível dizer: é apenas uma ficção, as coisas não ocorreram exatamente assim. Contudo, ocorreram mais ou menos assim. Ou melhor, o que haverá de primordial ocorreu exatamente assim. Expor frente aos outros as fraquezas não de um personagem, mas as nossas próprias, nunca será trivial. Exatamente por causa disso admiro tanto a prosa de Annie Ernaux, que abordou sua própria experiência envolvendo um aborto em O acontecimento.

Ao final, se expor suas vergonhas, dores e infrações não constrange o escritor, ainda pode ocorrer de constranger as pessoas reais que fizeram parte da história. Pouco adianta mudar o nome dos envolvidos e alterar determinadas circunstâncias a fim de preservar a identidade. Quem viveu o acontecido se reconhecerá nas palavras e poderá não concordar com o papel que lhe foi dado. Além disso, seria ético relatar uma história compartilhada mesmo sem ter a concordância de um dos envolvidos? O escritor Bernardo Kucinski se faz essa pergunta em Os visitantes, narrativa na qual alguns personagens de sua obra anterior vão visitá-los com o intuito de contestar o direito de publicizar uma certa versão acerca de episódios controversos do passado.

Assim, entre a necessidade de ser uma ficção significativa e os riscos de ficcionalizar sobre a própria vida está o dilema máximo deste aspirante a escritor. Sem perspectiva de encontrar uma solução, sigo me equilibrando próximo ao abismo da palavra. Escrevo a partir da minha vida, única experiência que desconheço com profundidade, mas censurando-me aqui e ali, buscando assegurar um último resquício de privacidade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Let the old dreams die: o conto de John Ajvide Lindqvist

Lindqvist é um autor sueco que se tornou bastante conhecido com a publicação da novela Let the right one in (Deixa ela entrar). A história trata da vida de um garoto solitário e vítima de bullying chamado Oskar. Ele vive na antiga Blackeberg (Suécia) e estabele uma relação de amizade (ou seria amor?) com Eli, sua nova vizinha.  Eli é uma vampira e, portanto, precisa de sangue para sobreviver. Ao poucos as duas crianças travam uma forte relação e passam a ajudar um ao outro. O livro de Lindqvist foi publicado no Brasil pela Editora Globo e também ganhou uma adaptação para o cinema muito bem produzida por Tomas Alfredson. Esse filme contou com as atuações exuberantes dos atores suecos Kare Hedebrant e Lina Leandersson. Depois de todo o sucesso e reconhecimento mundial, Lindqvist escreveu um conto que soluciona a ambiguidade final do livro. Em Deixa ela entrar , Oskar e Eli fogem no final após o massacre da piscina. Lindqvist escreveu o conto Let the old dreams die (Deixe ...

Beach rats: a verdade é despretensiosa

O filme Beach rats (Ratos de praia, 2017) começa com o jovem Frankie (Harris Dickinson) se fotografando no espelho, ainda envergonhado conversando com homens mais velhos pela internet, ele se encoraja e finalmente pede para ver um deles nu. Depois, vêm os fogos de artifício. Uma garota, que será sua futura namorada, olha para ele e comenta o quanto aquele brilho no céu é romântico. Frankie discorda e a moça então questiona: “qual é sua ideia de romance?”. Ele se silencia. Os fogos serão uma importante metáfora imagética ao longo do filme, sendo retrados também na tela do computador do rapaz. Na última cena do filme Frankie retorna para esse mesmo cenário, promovendo a percepção de que o questionamento feito a ele ainda permanece sem resposta. Ele ainda busca entender seus desejos sexuais. Os fogos de artifício servem para metaforizar a adolescência e juventude, mas fora da percepção típica do senso comum. Para além de uma época em que os desejos estão à flor da pele e em que se...

The Dreamers: o destino de Matthew no romance de Gilbert Adair

Entre os filmes que marcaram minha adolescência e juventude, The Dreamers (Os sonhadores, 2003) de Bernardo Bertolucci está na minha trilogia de favoritos, juntamente com Deixa ela entrar e O leitor . O filme conta a trajetória dos gêmios Théo e Isabelle e a forte relação estabelecida entre eles e o estudante estadunidense Matthew. Tudo ocorre após a cinemateca parisiense que frequentavam ser fechada. Com os pais ausentes, os irmãos e seu novo amigo trancam-se dentro de casa e, enquanto participam de um caprichoso jogo cinéfilo e sexual, permanecem completamente indiferentes a toda a agitação social que se produzia na França de 1968. Acordados com uma pedra que invade o grande apartamento, os jovens finalmente saem pra a rua e descobrem assustados tudo que estava ocorrendo. No filme, vemos ao final o casal de gêmios se separando de Matthew em meio à confusão, pois o jovem estrangeiro não deseja participar dos atos de violência. Esse enredo cinematográfico de The Dreamers é bas...