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Cabo de guerra: romance de Ivone Benedetti reflete sobre a ditadura no Brasil

Doutora pela USP e tradutora reconhecida, Ivone Benedetti estreou na literatura com o romance Immaculada (2009) e com o livro de contos Tenho um cavalo alfaraz (2011). Agora, ela volta à cena literária com Cabo de guerra (2016), romance que tematiza a ditadura civil-militar brasileira. De modo crítico e realista, ela se propõe a rememorar o passado e discutir as marcas deixadas por ele e ainda presentes no Brasil atual.

A narrativa conta a história de um sem-nome que não tem opinião própria nem destino definido. Ele narra sua própria história no transcorrer de três dias, os quais dividem o romance: no primeiro dia, a rememoração dedica-se prioritariamente a tratar da chegada do protagonista em São Paulo e das amizades que ele estabele com jovens de esquerda; já no segundo dia, a maior parte das lembranças é de sua atuação como infiltrado, levando informações para os militares; e no terceiro dia, por fim, o foco maior é em destacar a tentativa fracassada de reconstituir a sua vida, após ter sua dupla ação descoberta pelos militantes de esquerda.

A obra, grosso modo, também se divide em três linhas temporais: a primeira situa-se na infância e adolescência do protagonista, ainda na Bahia e vivendo ao lado dos familiares; a segunda é traçada desde sua chegada a São Paulo até os anos das manifestações pelas Diretas Já; por fim, a terceira refere-se ao tempo presente da narração, no qual vemos que o protagonista está imobilizado em uma cama, necessitando da ajuda de sua irmã Mariquinha e relembrando seu passado de sofrimento.

Para além dessas divisões, é possível perceber que desde a infância o narrador já sofre com delírios de loucura. Na sua família há outros dramas que acentuam o sofrimento, em especial o de seu avô que se sente culpado pelo provável suicídio do filho. Após a vinda para São Paulo, sem trabalho definido, é por meio do mau-caratismo que ele consegue seu sustento, seja trabalhando para um coronel, seja levando informações sigilosas para os militares. Assim, ele torna-se o ponto de ligação entre os dois lados da disputa política, sendo odiado e desprezado por ambos.

A questão religiosa também ganha espaço, especialmente quando ele observa a vida devotada de sua irmã. A fidelidade cristã dela torna, por contraste, ainda mais evidente a culpa e os pecados do protagonista. Ele foi o responsável por muitas mortes e não encontrou um lugar confortável para viver. Dos muitos amores que teve (Jandira, Maria do Carmo, Samira e Cibele), nenhum lhe quis realmente.

O final da obra, que o retrata como sendo vítima tanto de Rodolfo como de Tomás, é muito explicativo de sua condição. Sem agradar nem esquerda nem direita, nem a repressão nem a revolução, ele chega aos últimos dias de sua vida sem perspectivas para o futuro. Assim, o romance de Benedetti destaca os resquícios da ditadura que ainda se fazem presentes e conta uma história que ainda não conseguiu ser minimamente superada. 

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