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Let the right one in: os dez anos de um filme inesquecível

“Tinha que ir e viver ou ficar e morrer”, escreve Eli em certo momento de Let the right one in. O filme, cujo título original sueco é Lat den ratte komma in (Deixa ela entrar), foi exibido pela primeira vez em 26 de janeiro de 2008, durante o festival de cinema de Gotemburgo. A história, baseada no livro homônimo do escritor John Ajvide Lindqvist, também serviu de base para o remake estadunidense Let me In (2010) e para diversas adaptações teatrais. Além disso, recentemente, a TNT tentou adaptar o enredo para um seriado, mas a produção foi cancelada após o piloto.

Entretanto, deixemos um pouco de lado esses detalhes e foquemos nossa atenção na gélida versão cinematográfica sueca. Hoje, ela completa 10 anos desde que foi exibida pela primeira vez, por isso gostaria de falar um pouco sobre os motivos que fazem essa obra ser tão inesquecível. Na verdade, acho que nem sei explicar muito bem o quanto esse filme marcou a minha vida, tornando-se o meu favorito. Quando o assisti pela primeira vez, ainda pelo Youtube, me recordo de ter ficado encantado com as atuações belíssimas de Kare Hedebrant e Lina Leandersson, respectivamente, o Oskar e a Eli da película. Também me surpreendi com a maneira suave como a história é conduzida pela competente direção de Tomas Alfredson. Tudo é composto com tamanha sintonia que fez emergir meus sentimentos mais profundos.

LTROI, abreviação muito usada pelos fãs, aborda diversos temas extremamente atuais por meio do mito vampiresco. Oskar é um garoto que sofre bullying na escola, precisa lidar com as dificuldades de ter seus pais separados e, ao mesmo tempo, é seduzido por um estranho hábito de colecionar notícias de assassinatos. Desde sua primeira aparição em cena, quando o vemos munido de uma faca exigindo que seus inimigos imaginários gritem feito um porco, percebemos que estamos diante de um garoto que convive internamente com o desejo de vingança. Ao conhecer Eli, que chega a vizinhança numa noite escura, ele se sente encorajado a superar seus medos e tornar esse desejo uma realidade. Assim, mesmo que por motivos diferentes, tanto Oskar como Eli, almejam matar pessoas. Exatamente por isso, um compreende o outro tão bem.

Nesse ínterim, ao solucionar um cubo mágico, Eli não só surpreende Oskar, mas também desvenda a sua personalidade. Com isso, torna-se ainda mais forte o vínculo entre os dois. Observando LTROI em perspectiva, é certo que estamos diante de uma magnífica fábula sobre a adolescência, essa difícil fase de transição da vida. Eli é o símbolo dessa época na qual o nosso corpo apresenta os primeiros sinais adultos, no entanto, a nossa mentalidade ainda permanece ligada à fase infantil. As dúvidas relacionadas à sexualidade dos adolescentes também são incorporadas pela personagem. Por diversas vezes Eli põe em questão os arquétipos de feminino e masculino, especialmente quando pergunta a Oskar se ele a amaria mesmo que ela não fosse uma menina.

Por isso, na minha opinião, o filme trata essencialmente de empatia. Isto é, de saber aceitar o outro por mais diferente que ele seja. Não por acaso, numa das melhores cenas do filme, Eli implora a Oskar: “Ponha-se no meu lugar”. Perceber o lado sombrio do outro, conviver com suas fragilidades e, mesmo assim, está disposto a aceitá-lo e se sacrificar por ele é para poucos. Nos últimos momentos do filme, vemos justamente isso, direta e indiretamente, Oskar e Eli se mostram capazes até mesmo de matar para salvar a vida um do outro. Como vivemos em mundo cada vez mais indiferente, penso que essa curiosa história de um garoto solitário e de uma sombria vampira tem algo novo a nos ensinar. Sem dúvidas, por mais difícil que seja, precisamos permitir que os outros entrem em nossas vidas. Precisamos dizer “sim” para que eles se sintam acolhidos. Por mais assustador que pareça, cada pessoa é única e tem algo novo para nos acrescentar.

Dito isso, para que os elogios sobre esse filme genial não fiquem apenas reduzidos as minhas palavras que, admito, são totalmente passionais, pedi a dois amigos virtuais que também pudessem escrever sobre ele. Desde já, agradeço a Jéssica Alba e Emerson Rocha por terem se dado ao trabalho de falar sobre o contato de cada um com LTROI e os motivos pelos quais também consideram esse filme inesquecível. Por fim, espero que daqui a 10 anos, eu ainda esteja bem vivo para continuar cultivando esse mesmo carinho pela obra. Assistam LTROI, por mais belas que sejam as palavras dos meus amigos, nenhuma substitui a alegria de poder contemplar com calma a preciosidade de cada cena. Vida Oskar e Eli, viva o cinema que eterniza histórias como essa!

Jéssica Alba: “Talvez o que torne a ambígua relação entre Oskar e Eli tão bonita, seja sua sutileza e naturalidade. Ao contrário da maioria dos filmes de vampiro, Deixa ela entrar não faz uso da violência explícita ou do apelo sexual para nos apresentar estas criaturas. Aqui, os vampiros não são monstros, demônios, ou qualquer outra entidade maligna. Eles apenas vivem. Sobrevivem, tal como os humanos.  Com uma premissa simples e diálogos curtos, Deixa ela entrar é um exemplo de originalidade. Quase como num filme mudo, a profundidade do enredo está naquilo que se vê: um olhar, um gesto, uma cor. A fotografia é impecável, e o modo como os atores interagem faz tudo parecer ainda mais real. Desde pequena sou apaixonada por histórias de vampiro, e depois de tantos filmes, séries e livros, eu finalmente encontrei aquela que considero ser a melhor de todas! Claro, isso é muito pessoal, não posso te garantir que é a melhor obra de todos os tempos, mas com certeza, ela é inesquecível de alguma forma. Para mim, o que a faz tão marcante, além dos aspectos já citados, é a profundidade e a realidade de cada situação mostrada, a complexidade de cada personagem e, sobretudo, de Oskar e Eli.”

Emerson Rocha: “Eu me lembro de ter entrado em contato com a obra de John Ajvide Lindqvist quando assisti ao remake americano do filme sueco. Tá certo que peguei o caminho mais afastado da grande história original, mas ele ainda valeu a pena, pois serviu para me levar ao lugar certo. O filme dirigido por Matt Reeves me gerou fascínio. Sua melancolia, sua bela trilha sonora e história, que me pareceu deveras peculiar, arrebataram-me de tal maneira que tive de procurar por mais informações a respeito. Foi aí que descobri o filme sueco, no qual o longa americano se baseou, e o livro. Contemplei a grandeza da produção sueca e, embora ele tenha demorado a se fixar como o meu favorito (o filme americano cravou raízes profundas em mim), logo ele tomou o seu devido lugar como favorito. E então veio a leitura do livro. E que livro! Os maiores defeitos humanos estão ali - e eles envolvem crianças! Criaturas em formação, mas que parecem possuir os maiores males em suas costas. Algumas dessas crianças, como Eli e Oskar, nossos protagonistas, basicamente precisam encarar uma eterna escalada, que é simplesmente viver, carregando sempre seus pesados fardos. Os fardos de Oskar são o bullying diário que sofre na escola, o desejo de vingança sanguinária e a solidão. Eli também está sozinho, e sua sobrevivência lhe custa caro - tanto para ele quanto para os outros. Eli e Oskar se encontram na beirada do precipício no qual os problemas os empurram. Eles sempre caíram desse precipício, e sempre tiveram de subir novamente (por puro instinto de sobrevivência). Mas encontrar alguém que lhe estenda a mão na hora de um novo empurrão era algo inédito para os dois, e então a nova subida era feita com menos pesar e com um pouquinho mais de vontade de sobreviver, pois ali havia outra coisa totalmente nova: companhia para enfrentar tudo aquilo. Conforto em não estar totalmente sozinho. Um havia deixado o outro entrar. Esse conto de fadas sombrio criado por Lindqvist nos mostra que humanos e vampiros não chegam a possuir tantas diferenças assim. Oskar se dá conta disso. Eli sente isso na própria carne. Então, se a oportunidade de contemplar o trabalho de John Ajvide Lindqvist bater na sua porta - seja qual for: livro ou filmes -, que tal deixá-la entrar?”

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