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A modernidade em Clarice Lispector: comentário sobre A paixão segundo G. H.

“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada”, diz Clarice Lispector na abertura de um dos seus principais romances. Nesse texto, respondendo a uma questão da prova de “Tópicos da narrativa brasileira”, comento superficialmente sobre o romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector. De maneira mais específica, busco delimitar em que aspectos estruturais (personagens, tempo, enredo, espaço e narrador) essa obra quebra com os padrões convencionais da narrativa tradicional. Transcrevo, com algumas pequenas alterações, o que escrevi.

É perceptível que o romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, rompe com a tradição literária, situando-se dentro do ambiente modernista da literatura. Mas quais características presentes nessa narrativa nos permitem fazer essa afirmação?

A primeira característica é a mudança no foco narrativo da história. Ao contrário dos romances tradicionais que apresentam um narrador onisciente para organizar as informações na mente do leitor, em A paixão segundo G. H. é a própria protagonista que narra sua experiência em primeira pessoa. Desse modo, vemos que a narrativa se desorganiza ao passo que nem a própria personagem compreende a transformação que lhe ocorreu.

Uma segunda característica que enquadra essa obra de Clarice Lispector numa perspectiva modernista é o fato de o enredo ser extremamente simples. Em sua narração, G. H. (Gênero Humano?) limita-se a rememorar o que fez no dia anterior, quando entrou no quarto da empregada e encontrou uma barata. Essa simplicidade exterior do enredo se contrapõe a maioria das ficções tradicionais, que costumavam apresentar enredos longos e complexos, repletos de idas e voltas nas ações dos personagens.

Já a terceira característica moderna do romance deve-se a utilização peculiar que é feita do tempo e do espaço. Em A paixão segundo G. H. o espaço reduz-se a moradia da protagonista, sendo que um enfoque maior é dado ao quarto da sua empregada. Quanto ao tempo, ele é de apenas dois dias, pois a narradora busca contar para nós leitores uma experiência vivida por ela no dia anterior. Como se sabe, os romances tradicionais transcorriam em grandes espaços físicos (cidades, países, etc), além do que o tempo era sempre de meses, anos e até décadas, como ocorria, por exemplo, nos romances de formação. Entretanto, nesta obra modernista de Clarice o espaço exterior é devastado pela interioridade da personagem, tornado o tempo puramente psicológico. 

Portanto, vemos em linhas gerais que A paixão segundo G. H. é um obra modernista que rompe com a tradição não apenas porque busca uma estrutura original que se encerre em si mesma, mas porque procura uma forma que interiorize e retrate as incertezas do homem moderno. Atualmente, o desenvolvimento científico permite que a humanidade avance na exploração e compreensão do mundo exterior. No entanto, paradoxalmente, a literatura nos mostra que os indivíduos se sentem cada vez mais desconhecidos quando se voltam para dentro de si mesmos.

Por fim, vale ressaltar que a fragmentação da identidade é outra característica moderna presente nessa obra de Clarice Lispector. Após a empregada ir embora e G. H. se alimentar da barata encontrada no seu quarto, observa-se que a personagem fica perdida, desorganizada. Ela percebe o quão sem valor é o mundo de convenções e aparências do qual faz parte. Por isso, mesmo reconhecendo a limitação da linguagem, resolve contar a experiência epifânica pela qual passou em busca de compreender a vida e a si própria. Vejamos como isso se revela desde o trecho inicial do romance:

“------ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.”

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