Entre os romances contemporâneos que se propuseram a tematizar os anos de ditadura civil-militar e suas consequências, o romance O fantasma de Buñuel (2004), da autora goiana Maria José Silveira, é inegavelmente um dos mais representativos. A narrativa foca seu olhar em um grupo de cinco jovens que estudava na UnB e tinha nos filmes de Luis Buñuel uma paixão em comum. Cada um dos jovens é focalizado em uma das partes da narrativa e suas reflexões são feitas a partir de épocas distintas, conforme podemos perceber já no título dessas partes: “1968 - Edu: A noite do princípio”, “1978 - Tadeu: Os arautos negros”, “1988 - Dina: O clico das águas”, “1998 - Tonho: As metamorfoses” e “2003 - Esmeralda: A manhã do fim”.
É curioso observar como, ao longo da narrativa, o foco em um dos personagens vai ajudando o leitor a ter uma visão mais completa dos demais. Isso porque, mesmo a obra alternando entre narradores de primeira pessoa (os jovens) e um narrador de terceira pessoa (onisciente), ao final de cada parte o leitor tem a impressão de que a história daquele personagem focalizado ainda não foi completamente esgotada. Cada um dos jovens tem uma personalidade própria e uma história de vida singular, o que faz com que o enredo da narrativa apresente diversas revelações surpreendentes. Muitas dessas revelações são motivadas pelos encontros marcados entre os personagens para ocorrer a cada 10 anos. Esses encontros, inspirados em uma declaração do cineasta Luis Buñuel, são explicados da seguinte forma pelo personagem Tonho:
“E por falar nele, vocês leram seu livro de memórias, Meu último suspiro? Totalmente Buñuelesco. No final, ele diz que não se importaria de morrer, só lamentava não saber o que iria ocorrer depois, não queria ‘abandonar o mundo em pleno movimento, como no meio de um folhetim’. Apesar de seu ódio pela mídia, diz que, de dez em dez anos, gostaria de se erguer dentre os mortos, caminhar até uma banca de jornais e comprar alguns. ‘Com jornais debaixo do braço, lívido, esbarrando nos muros, retornaria ao cemitério e leria os desastres do mundo, antes de tornar a dormir, satisfeito, na proteção tranquilizadora da sepultura’. Mal saía de casa na época, já com mais de oitenta anos, quase completamente surdo e com problemas de visão. Vocês não acham que a história desse fantasma daria um filme?”
Exatamente por causa desse desejo de Buñuel, cada uma das partes do romance traz a capa de um jornal da época mostrando as principais notícias do dia. As notícias fazem referências a fatos diversos da história nacional: cassação de deputados após o AI-5, promessa de abertura política após eleição de Figueiredo, entre outras. Diante dessa contextualização mais geral, buscarei agora comentar mais detalhadamente cada uma das partes do romance. Mas atenção: esses comentários conterão spoilers!
Na primeira parte do romance (1968 - Edu: A noite do princípio), o protagonista Edu relembra a noite em que se despediu dos amigos de Brasília para entrar na clandestinidade. Essa noite foi composta de três atos: ir ao cinema assistir Buñuel, fazer uma pichação contra a ditadura e participar de um aniversário. Ele também relembra a sua infância na decadente fazenda de sua avó, a vinda com seus pais para Brasília ainda em construção e a ascensão dos militares que levou a invasão da UnB. Em meio a isso, Edu revela sua enorme paixão por Esmeralda e chega até a manter relações sexuais com ela, mas no final fica sabendo que o sentimento não é recíproco. Tudo isso é narrado no último dia de 1968, quando Edu está a caminho de Cuba para realizar treinamento de guerrilha e posteriormente voltar ao Brasil para participar da luta armada. Mas o leitor descobre na parte seguinte da obra que Edu foi preso, torturado e morto enquanto tentava retornar ao país.
A segunda parte do romance (1978 - Tadeu: Os arautos negros) apresenta o protagonista Tadeu sendo atormentado pelo passado após encontrar-se com Esmeralda. Ele relembra sua infância, época na qual morava em Salvador e sofria perseguição por ser gay; e sua juventude, período no qual morava em Brasília e se apaixonou por Edu mesmo ele não sendo homossexual. Tadeu teve um pai autoritário (deputado Lamartine) e uma mãe devotada (Leonor), deles herdou sua boa condição financeira e o apego incontido ao catolicismo. Durante sua vida, Tadeu sempre buscou de todas as formas a aceitação das pessoas. Aliás, por muito tempo, ele tentou esconder sua orientação sexual, só conseguindo assumir-se plenamente quando se mudou de Brasília para o Rio de Janeiro. Tadeu é o resultado de uma mescla entre o mundo conservador e o mundo revolucionário, por isso em certo momento é revelado à existência do seu duplo: Mirley, sua versão feminina que por vezes se entrega a libertinagem sexual. E será justamente essa libertinagem, conforme o leitor fica sabendo na parte seguinte, que irá causar a morte de Tadeu. Ele morre vítima do HIV, sendo que - somente após esse fato - é que as criações artísticas produzidas por ele passam a ser reconhecidas.
Já na terceira parte da narrativa (1988 - Dina: O clico das águas), a protagonista Dina está com 41 anos e vive o dia posterior ao reencontro com Tonho e Esmeralda. Ela se mostra uma defensora incansável da causa ambiental, sendo que essa paixão vem desde a sua infância quando observava um rio próximo de sua casa. Dina viveu seus primeiros anos de vida ao lado dos pais, de sua tia Romanza e da empregada Dois Milagres. Sua mãe e sua tia morreram do Mal de Chagas, seu pai foi intoxicado por mercúrio em um garimpo e somente Dois Milagres morreu de velhice. Durante a época em que viveu em Brasília, Dina participou diretamente da luta contra a ditadura. Ela e Edu sempre foram os mais engajados e idealistas. Por causa dessa participação, Dina foi presa e torturava, sendo que essa violência causou-lhe um aborto e tornou-lhe infértil. Diante do perigo, ela teve de exilar-se no Chile, lugar onde vivenciou o golpe militar de dentro da embaixada do Panamá. Em seguida, foi exilar-se na França e somente retornou ao Brasil após a anistia. Durante esse tempo, Dina colecionou muitos relacionamentos fracassados (Valdo, Délio, Heitor, entre outros). Ao lado de Délio, ela adotou duas crianças: Diana e Tarcísio. No tempo presente da narrativa, mesmo em meio a brigas constantes, Dina trabalha ao lado de Tonho produzindo documentários sobre questões ambientais.
Na quarta parte da narrativa (1998 - Tonho: As metamorfoses), Tonho, que trabalha como cineasta, mostra-se ainda incomodado pelas emoções do reencontro com Dina e Esmeralda na noite anterior. Ele guarda dentro de si um sentimento de culpa por ter delatado Dina após ser preso e torturado ao lado de Tadeu. Ao finalmente conseguir contar isso para a amiga, Dina diz que ele não devia sentir culpa, pois ambos foram vítimas da violência praticada pela ditadura. Tonho é natural de Manaus e sua família é de origem pobre, por isso ele se recorda com gratidão e rancor da infância que teve ao lado de duas crianças ricas: Pedro Márcio e Isaura Maria. Ele se mostra bastante cético, quer esquecer o passado e diz que nunca se iludiu com idealismos. Durante uma época, Tonho foi casado com uma mulher culta e rica chamada Judith, mas eles se separaram após a filha do casal (Maria Ruth) ser sequestrada e o pai da esposa ter de pagar o resgate. Por causa dessa e de outras desilusões, Tonho vê os problemas da humanidade como insolúveis, constata que a geração de sua época fracassou, mas ainda assim sonha em filmar um longa-metragem.
A quinta e última parte da narrativa (2003 - Esmeralda: A manhã do fim) apresenta, além de um narrador em terceira pessoa, uma carta escrita por Esmeralda e endereçada a Dina. Na carta Esmeralda afirma que não sabe se comparecerá ao encontro marcado para 2008, pois planeja abandonar Nova York e viajar pelo mundo em busca de algo indefinido que não sabe se encontrará. Ela explica para Dina que pela primeira vez será sincera, pois sempre foi distante e viveu com uma máscara. Com seus 60 anos, ele acha que chegou a hora de contar que foi abusada por um amigo militar de seu pai. Como seu pai tinha conhecimento da situação, os abusos só pararam de ocorrer após sua mãe Abigail descobrir e os dois se separarem. Esmeralda também revela que permanece solteira e não se apaixonou mais desde que viu seu primeiro amor, o esquizofrênico Demétrio, se suicidar. A maior prova da sua incapacidade de amar alguém é Cida, uma colega artista plástica esquisita que morou com ela vários anos, mas que também já morreu. No entanto, o fato principal que Esmeralda deseja revelar é que tem um filho de Edu, fruto da única noite de amor entre os dois. O menino foi criado pela sua mãe Abigail, estudou medicina em Cuba e atualmente trabalha no Médico sem Fronteiras.
O encerramento do romance de Maria José Silveira é composto de um epílogo de 2004. Nele, o leitor fica sabendo que o sonhado filme de Tonho está finalmente estreando. Porém, após a exibição, Dina vai para casa e fica sabendo pela televisão que uma explosão terrorista acabou tendo entre as vítimas fatais Esmeralda.
Pessoalmente, gostei bastante do romance O fantasma de Buñuel. Apesar de haver certo excesso de “revelações bombásticas”, a narrativa é coerente e, por meio de seus envolventes personagens, o leitor consegue apreender o complexo drama da geração que viveu a ditadura e ainda sofre com seus malefícios. Nesse sentido, a capa de jornal que antecede o epílogo romance - ao tratar de corrupção, tortura e censura - mostra que mesmo com o fim da ditadura civil-militar, mecanismos autoritários continuam existindo no Brasil.
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