Pular para o conteúdo principal

Resenha crítica: O voto ou a bala, de Malcolm X

Apresentado na primeira parte da obra Outras modernidades (2009), o discurso de Malcolm X intitulado “O voto ou a bala” foi proferido na cidade de Cleveland em 1964. Malcolm X pertenceu a Nação do Islã (NOI), uma vertente mulçumana que acreditava na superioridade negra e no caráter imutável da maldade branca. No entanto, diversas experiências ao longo da vida levaram-no a rever suas posições e acreditar na possibilidade da convivência pacífica entre negros e brancos. Nesse discurso, Malcolm X denuncia a persistência da segregação negra nos Estados Unidos e destaca o empoderamento racial como sendo o único meio possível dos negros terem acesso pleno aos Direitos Civis. Trata-se, portanto, de um discurso proferido num contexto político e social no qual, apesar dos avanços ocorridos ao longo da história americana, a discriminação contra as comunidades negras ainda era enorme.

Em termos de conteúdo, o discurso de Malcolm X foca sua atenção no processo eleitoral de 1964, uma vez que nele os negros teriam a oportunidade de eleger políticos realmente comprometidos com o combate a segregação racial e com a promoção da igualdade entre todas as pessoas. Por meio de um diálogo franco e aberto, Malcolm X alerta para a morosidade com a qual os políticos congressistas, especialmente os Democratas, discutem a ampliação dos Direitos Civis para os negros. Na visão do orador, é preciso que os negros cobrem com mais ênfase a classe política e, caso não sejam atendidos, estejam preparados para usar a força como meio para ter as suas reivindicações atendidas.

Estruturalmente, observando a segmentação temática do discurso de Malcolm X, merece ênfase as seguintes partes: primeiramente, o orador alerta para a importância de todos os negros se unirem contra os brancos e utilizarem até mesmo a violência caso o regime de opressão se mantenha; em seguida, Malcolm X destaca que é preciso elevar a luta pelos Direitos Civis ao nível da luta pelos Direitos Humanos, pois assim os negros estadunidenses conseguiriam o apoio de diversos países que compõem a Organização das Nações Unidas (ONU); por fim, ele propõe a adoção da filosofia política, social e econômica do chamado nacionalismo negro, buscando por meio dela organizar e fortalecer o poder dos negros na sociedade. 

De modo consciente, por meio dessa estrutura e do conteúdo de seu discurso, Malcolm X intencionava promover o protagonismo negro nos Estados Unidos. Ele aponta os brancos, especialmente aqueles que compõe o governo, como os principais inimigos da comunidade negra. Diante disso, defende que os negros se conscientizem sobre a obrigação do Estado de lhes garantir acesso aos Direitos Civis. Portanto, se os negros não estão sendo tratados de maneira igualitária, é preciso que eles se articulem para obter o que lhes é devido. É nesse sentido que Malcolm X afirma: “Não joguem votos no lixo. Um voto é como uma bala. Não usem seus votos a menos que vocês tenham um alvo, e se o seu alvo não estiver ao seu alcance, guarde seu voto no bolso” (p. 92).

Analisando criticamente esse documento histórico, algumas ideias chamam bastante atenção. Como aspecto negativo, podemos destacar os fortes resquícios da escravidão presentes na mentalidade mais segregacionista dos representantes parlamentares do Sul dos Estados Unidos. A escravidão foi mais longa e mais intensa nessa região, gerando inclusive à Guerra da Secessão. Já como aspecto positivo, vale ressaltar o papel importante que a religião teve na luta dos negros pelos Direitos Civis. Vários líderes de diferentes religiões utilizaram as ideologias que subsidiavam suas crenças para defender o tratamento igualitário de todas as raças que compunham a sociedade americana. 

Finalmente, como traço curioso, vê-se que a cultura armamentista e o próprio patriotismo, muito presentes na mentalidade americana, são articulados por Malcolm X em benefício dos negros. Para isso, ele afirma que os negros tiveram um papel crucial na construção da riqueza estadunidense e, dessa forma, devem usar até mesmo as armas para que os seus direitos de acesso a essa prosperidade sejam devidamente respeitados. 

Portanto, o discurso “O voto ou a bala”, de Malcolm X, encoraja os negros a lutarem pelo que é seu, seja pela via da legalidade (eleições) ou mesmo da violência (bala). Em relação a esse uso da força, apesar de polêmico, é bem fundamentado. Para Malcolm X, não existe revolução consentida, sendo que as armas são um meio eficaz de resistência. Nas palavras dele, “em áreas onde o governo se mostrou indisposto ou incapaz de defender as vidas e as propriedades dos negros, é hora de os negros se defenderem” (p. 96).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Let the old dreams die: o conto de John Ajvide Lindqvist

Lindqvist é um autor sueco que se tornou bastante conhecido com a publicação da novela Let the right one in (Deixa ela entrar). A história trata da vida de um garoto solitário e vítima de bullying chamado Oskar. Ele vive na antiga Blackeberg (Suécia) e estabele uma relação de amizade (ou seria amor?) com Eli, sua nova vizinha.  Eli é uma vampira e, portanto, precisa de sangue para sobreviver. Ao poucos as duas crianças travam uma forte relação e passam a ajudar um ao outro. O livro de Lindqvist foi publicado no Brasil pela Editora Globo e também ganhou uma adaptação para o cinema muito bem produzida por Tomas Alfredson. Esse filme contou com as atuações exuberantes dos atores suecos Kare Hedebrant e Lina Leandersson. Depois de todo o sucesso e reconhecimento mundial, Lindqvist escreveu um conto que soluciona a ambiguidade final do livro. Em Deixa ela entrar , Oskar e Eli fogem no final após o massacre da piscina. Lindqvist escreveu o conto Let the old dreams die (Deixe ...

Beach rats: a verdade é despretensiosa

O filme Beach rats (Ratos de praia, 2017) começa com o jovem Frankie (Harris Dickinson) se fotografando no espelho, ainda envergonhado conversando com homens mais velhos pela internet, ele se encoraja e finalmente pede para ver um deles nu. Depois, vêm os fogos de artifício. Uma garota, que será sua futura namorada, olha para ele e comenta o quanto aquele brilho no céu é romântico. Frankie discorda e a moça então questiona: “qual é sua ideia de romance?”. Ele se silencia. Os fogos serão uma importante metáfora imagética ao longo do filme, sendo retrados também na tela do computador do rapaz. Na última cena do filme Frankie retorna para esse mesmo cenário, promovendo a percepção de que o questionamento feito a ele ainda permanece sem resposta. Ele ainda busca entender seus desejos sexuais. Os fogos de artifício servem para metaforizar a adolescência e juventude, mas fora da percepção típica do senso comum. Para além de uma época em que os desejos estão à flor da pele e em que se...

The Dreamers: o destino de Matthew no romance de Gilbert Adair

Entre os filmes que marcaram minha adolescência e juventude, The Dreamers (Os sonhadores, 2003) de Bernardo Bertolucci está na minha trilogia de favoritos, juntamente com Deixa ela entrar e O leitor . O filme conta a trajetória dos gêmios Théo e Isabelle e a forte relação estabelecida entre eles e o estudante estadunidense Matthew. Tudo ocorre após a cinemateca parisiense que frequentavam ser fechada. Com os pais ausentes, os irmãos e seu novo amigo trancam-se dentro de casa e, enquanto participam de um caprichoso jogo cinéfilo e sexual, permanecem completamente indiferentes a toda a agitação social que se produzia na França de 1968. Acordados com uma pedra que invade o grande apartamento, os jovens finalmente saem pra a rua e descobrem assustados tudo que estava ocorrendo. No filme, vemos ao final o casal de gêmios se separando de Matthew em meio à confusão, pois o jovem estrangeiro não deseja participar dos atos de violência. Esse enredo cinematográfico de The Dreamers é bas...