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A nova ordem: destrinchando a distopia brasileira de Kucinski

O romance A nova ordem (2019), de Bernardo Kucinski, é resultado direto da ascensão da extrema-direita no Brasil. A obra se utiliza da distopia para apresentar o país num futuro próximo se tornando uma ditadura governada por ideais militares e teocráticos. Nesse contexto, a narrativa passeia entre o absurdo e a realidade palpável, levando o leitor a perceber no seu cotidiano o prenúncio de dias catastróficos. É como se Kucinski nos dissesse: tudo isso não pode acontecer, mas já está acontecendo.

Logo nas duas epígrafes iniciais, de Aldous Huxley e George Orwell, o leitor é colocado em contato com reflexões acerca da servidão na qual vivem as massas oprimidas. Isso serve de preparação para a realidade distópica que se avizinha. Nos parágrafos a seguir irei apresentar brevemente o que se encontra em cada um dos 22 capítulos que compõem o mais novo livro de Kucinski. 

I. “A nova ordem proclama seu advento. O fechamento das universidades e a morte do pensamento crítico”: nesse capítulo acompanhamos os diálogos de cientistas, catedráticos e intelectuais que foram presos pela Nova Ordem. Eles discutem sobre a situação precária país e temem pelo futuro. Após o comando de um coronel, todos eles são levados para uma área na qual são fuzilados e enterrados numa vala. 

II. “Angelino filosofa sobre o destino dos livros e os vários significados do lixo. A profecia dos utopistas”: nesse capítulo conhecemos Angelino, um engenheiro de formação que na Nova Ordem trabalha como catador. Como um édito proibiu a presença de livros em casa, esse é o principal elemento que enche a caçamba de lixo de Angelino. Para ele, a ausência de lixo revela a miséria de um povo. Em meios aos livros que encontra nas ruas, Angelino se depara com textos subversivos.

III. “O pesadelo do capitão médico Ariovaldo e seu estalo perante a freira desmaiada. O mistério dos santinhos”: nesse capítulo vemos Ariovaldo e alguns companheiros torturando utopistas para extrair informações importantes sobre outros subversivos. Ao observar uma freira que desmaia durante uma sessão de tortura, ele tem a ideia de induzir os utopistas a sonhar para que se possa capturar o conteúdo dos seus sonhos.

IV. “Marilda recorda a infância enquanto aguarda Germana; afasta a nostalgia suspirando pelo general Fernandes”: nesse capítulo nos deparamos com Marilda, esposa de Ariovaldo, aguardando Germana para irem juntas a um estabelecimento comercial destinado ao uso exclusivo de grupos superiores. Enquanto relembra alguns dos seus doze irmãos e lamenta a falta de virilidade sexual do marido, a personagem pensa em ter uma relação amorosa com Fagundes para facilitar a promoção de Ariovaldo.

V. “Ariovaldo explora modos de penetrar no inconsciente do preso. O soro da verdade”: nesse capítulo, ambicionando sua promoção, Ariovaldo planeja ações que possam impressionar o major Humberto, seu superior. A fim de capturar os sonhos dos utopistas, ele pensa em algumas possibilidades (hipnose, sessão mediúnica, soro da verdade e até mesmo uso de psicanalistas infiltrados). Na visão do personagem, é preciso sair do vício da tortura e propor outras formas de extrair informações dos utopistas.

VI. “Ariovaldo recorre à teoria dos Reflexos Condicionados de Pavlov. Marilda torce pela promoção. O estupro da freira”: nesse capítulo, ao ver o cachorro Duque ser premiado após obedecer a Marilda, Ariovaldo pensa em utilizar o mesmo esquema do genial Pavlov para extrair informações dos utopistas. Durante a tarde ele recebe uma ligação de Lucas informando que a freira havia dado uma informação falsa e que foi estuprada por Nava.

VII. “O general Fagundes celebra o desbaratamento da subversão. O extermínio dos utopistas capturados”: nesse capítulo é criada uma operação chamada Quimera para aniquilar a subversão utopística. Utilizando um software que rastreia a comunicação via WhatsApp, milhares de utopistas são descobertos e pegos de surpresa. O capitão Augusto explica sua proposta de se livrar dos utopistas jogando seus corpos no mar.

VIII. “O protocolo do suplício por etapas distintas. A genial ideia do psicanalista informante. A morte da freira”: nesse capítulo acompanhamos Ariovaldo criando um protocolo de interrogatório dos utopistas composto por cinco etapas (soro da verdade, choque nos genitais, estupro ou empalação, suplício dos familiares e execução simulada). O protocolo também trata da criação de psicanalistas informantes e da instalação de salas próprias para suplício. No fim do dia, Ariovaldo é informado de que a freira morreu de hemorragia.

IX. “As restrições do major Humberto ao protocolo de suplício e seu entusiasmo pela figura do psicanalista informante”: nesse capítulo o capitão médico Ariovaldo se encontra com o major Humberto para apresentar seu protocolo científico de lidar com os utopistas na fábrica. Como o major é espírita, ele gosta de opções de extração de informações que não envolvam tortura. Ariovaldo expõe também o seu plano de captura dos sonhos e de infiltração na comunidade dos psicanalistas. 

X. “Ariovaldo ganha o almejado laboratório, mergulha na homeostase e inventa a touca neuro-sensorial”: nesse capítulo ficamos sabendo que o projeto de Ariovaldo foi aceito e ele foi promovido a major. No Laboratório de Pesquisas Psicossomáticas do Sono (LPPS), Ariovaldo utiliza como cobaias os retirantes que infestam as cidades depois da concentração fundiária. O personagem ainda consegue construir um capacete, a touca neuro-sensorial, capaz de investigar a relação entre os comandos cerebrais, o metabolismo e os sentimentos.

XI. “A missão secreta do sargento Messias. A confissão e o descarte do revólver”: nesse capítulo o sargento Messias é designado para uma missão secreta que tem o codinome de Operação Capela. Para cumprir sua tarefa, o sargento Messias vai aos confessionários dos padres e tenta identificar algum comportamento subversivo neles. Numa das rondas dessa operação, Messias termina se confessando com sinceridade ao padre Bartolomeu, dando detalhes das ações da Nova Ordem contra os padres. Em seguida, ele vai embora, se livra do revólver e passar a planejar viver uma outra vida.

XII. “Os novos experimentos de Ariovaldo. A sensacional descoberta dos Reflexos Condicionados Dormentes”: nesse capítulo Ariovaldo continua trabalhando na sua pesquisa e costuma ir à estação selecionar entre os retirantes as cobaias que irá utilizar em seus testes. Uma experiência com Reflexos Condicionados Dormentes (RCD) mostra que é possível gerar associações nas cobaias durante o sono e assim extrair informações da memória do preso. 

XIII. “A morte de Germana. Marilda consola o general Fagundes. O filho desgarrado de Fagundes”: nesse capítulo é dito que Germana morreu devido a um tumor, sendo que Marilda se aproxima ainda mais de Fagundes e vai a sua casa com frequência para encontros furtivos. Ariovaldo não percebe nada, pois está totalmente focado no trabalho. O general Fagundes tem um filho chamado Marcelo, ele se tornou cantor de rock e fugiu do país com outro cantor famoso e gay. 

XIV. “Humberto cai em desgraça. O general Fagundes revela a Ariovaldo o mais bem guardado segredo da Nova Ordem”: nesse capítulo Ariovaldo é promovido a tenente-coronel após o coronel Humberto cair em desgraça junto a cúpula ditatorial. Fagundes explica para Ariovaldo os detalhes da Operação Cândida, destinada a capturar e exterminar os moradores de rua. Segundo o general, após os moradores de rua, prostitutas, drogados e deficientes físicos e mentais também terão o mesmo destino. Trata-se de um programa de saneamento demográfico que visa eliminar cerca de 90 milhões de pessoas jogando seus corpos no mar. 

XV. As atividades clandestinas do padre Bartolomeu. A rede de informações dos dominicanos. A queda do padre”: nesse capítulo descobrimos que Padre Bartolomeu pertence a Ordem dos Dominicanos, alinhada com a Teologia da Libertação, ela apoia discretamente os utopistas. Ao ouvir a confissão do sargento Messias, padre Bartolomeu escreve um relatório e viaja para São Paulo a fim de repassar as informações. Entretanto, ele é abordado por três homens e aparentemente é preso. 

XVI. “A consagração de Ariovaldo e a implantação do Programa Nacional da Psicanálise Aplicada”: nesse capítulo Ariovaldo ganha notoriedade científica e se torna presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise e Psiquiatria. Seu objetivo é expandir o número de psicanalistas informantes para além dos 270 distribuídos em 18 capitais. No novo código de ética da categoria, ele obriga os psicanalistas a comunicarem a existência de pacientes com tendências homossexuais, suicidas, homicidas ou subversivas. Surge assim o Programa Nacional da Psicanálise Aplicada na Nova Ordem (PANO).

XVII. “Os experimentos com gêmeos univitelinos e a descoberta de que sonhos são movidos por desejos e paixões”: nesse capítulo Ariovaldo descobre por meio de seus experimentos com gêmeos que é possível suprimir desejos e sentimentos humanos. Isso porque os desejos e sentimentos são as forças psíquicas motoras dos sonhos.

XVIII. “A criação do Chip de Customização de Humanos e sua incorporação ao Plano Nacional de Psicanálise Aplicada”: nesse capítulo o Plano Nacional de Psicanálise Aplicada adota a corrente Behaviorista Radical da Psicanálise. Ariovaldo desenvolve um chip capaz de tornar a população dócil e passiva. O Chip de Customização de Humanos é capaz de remover memórias, criar euforia, imprimir e suprimir valores determinados. Nesse contexto, se torna necessário o Certificado de Pessoa Customizada (CPC) para se conseguir um emprego manual ou no serviço público.

XIX. “Julgado, condenado e degradado, Humberto faz um balanço de sua vida, não se arrepende de nada”: nesse capítulo vemos o coronel Humberto ser julgado por uma Corte Marcial. Ele infere que está sendo responsabilizado pela deserção e sumiço de Chico Messias, como também porque um relatório denunciando a fábrica havia chegado as mãos de europeus. Humberto é declarado culpado e, já na cela, ele encontra uma pistola com a qual se suicida.

XX. “O risco de colapso da Nova Ordem e a criação do Chip de Customização de Humanos Dirigentes”: nesse capítulo Ariovaldo precisa criar o Chip de Customização de Humanos Dirigentes (CCHD) para substituir a elite que está envelhecendo e morrendo. Com isso, o chip original anterior passa a se chamar Chip de Customização de Humanos Conformados (CCHC). Essa customização dos humanos foi copiada por vários países. 

XXI. “Angelino encontra o revólver largado pelo sargento Messias. O sumiço dos moradores de rua. O justiçamento do general Fagundes”: nesse capítulo Angelino, que vive como morador de rua, fica sabendo por um dono de um bar que o governo não quer mais morador de rua. Enquanto vagueia sem destino, Angelino se encontra com o general Fagundes, dá dois tiros nele e foge na escuridão. Marilda, que vê o general à porta do edifício, depreende que ele está morto. 

XXII. “Epílogo - A indesejável supressão dos sonhos e a decorrente depressão de Ariovaldo”: nesse capítulo ficamos sabendo que, mesmo com todo o seu sucesso e fama, Ariovaldo nunca conseguiu capturar um fragmento sequer do conteúdo dos sonhos. Com os utopistas dizimados e sem retirantes devido ao ajuste populacional, ele não tinha mais cobaias à disposição. Em crise depressiva, Ariovaldo é internado num pavilhão psiquiátrico do Hospital Central do Exército. Aparentemente, ele injeta melatonina, dorme profundamente e quando desperta tenta escrever tudo o que sonhou.

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