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Édipo Rei, de Sófocles: a ironia trágica em três atos

A obra Édipo Rei, de Sófocles, é composta de uma estética magnífica. Essa peça trágica grega conta a história de Édipo, rei de Tebas, assassino do seu próprio pai (Laio) e marido da própria mãe (Jocasta). Tudo isso devido a uma maldição imposta pelo deus Apolo.

Estruturalmente, Édipo Rei apresenta uma coesão grandiosa, afinal, nada nesta peça é por acaso, sendo que todas as personagens têm uma função imprescindível para se desvendar o assassino de Laio (rei que antecedeu Édipo no trono de Tebas) e a consequente verdadeira identidade do próprio Édipo.

Portanto, poderíamos tratar de infinitos temas relacionados a esta obra, como o enredo, a interferências dos deuses ou até mesmo a participação de alguma personagem em específico. Porém, escolhi tratar da ironia trágica, pois fiquei fascinado com a forma como Sófocles habilmente manejou esse recurso em Édipo Rei. Vale ressaltar que, para fins didáticos, irei abordar separadamente três pontos da obra nos quais Sófocles utiliza esse recurso da ironia trágica.

Num primeiro momento, a ironia trágica se apresenta quando o autor usa as personagens para “dizer a verdade sem dizer a verdade”. Por diversas vezes, Sófocles joga com as palavras e revela indiretamente ao público o passado e o futuro do pobre Édipo. Logo no início da peça, ao tratar do assassino de Laio, Édipo diz: “E se ele convive comigo sem que eu saiba invoco para mim também os mesmos males que minhas maldições acabam de atrair inapelavelmente para o celerado!”. Ou seja, sem perceber, Édipo amaldiçoa a si próprio, como se já não bastasse ser amaldiçoado por Apolo. Isso ocorre porque o homicida de Laio não só convive com Édipo, mas é o próprio Édipo.

Além disso, quando o mensageiro de Corinto pergunta por Édipo, o Corifeu (representante do Coro formado pelos cidadãos de Tebas) responde o seguinte: “Vês o palácio dele; o rei está lá dentro; / À tua frente está sua mulher e mãe / dos filhos dele. Eis a resposta, forasteiro”. Perceba que Sófocles termina o segundo verso afirmando por meio da fala do Corifeu que Jocasta é esposa e mãe de Édipo ao mesmo tempo. Isto é, o Corifeu diz, ainda que sem intenção, uma verdade desconhecida por todos. Contudo, no verso seguinte é especificado que Jocasta é mãe, mas dos filhos de Édipo, desfazendo assim a interpretação anterior. Fico tentando imaginar qual não era a reação do público grego ao perceber esses traços irônicos extremamente bem colocados por Sófocles.

Já num segundo momento, a ironia trágica se apresenta no enredo porque, ao tentar fugir do seu destino, Édipo vai de encontro a ele. Essa marca irônica se dá quando Édipo foge de Corinto com medo de matar seu pai e desposar sua mãe, pois era isso que o oráculo de Apolo havia dito que ele estava predestinado a fazer. Entretanto, Édipo não sabia que Pólipo e Mérope (rei e rainha de Corinto) não eram seus pais verdadeiros, sendo ele um filho postiço. E pior! Foi durante a fuga de Corinto que numa encruzilhada Édipo matou Laio, ainda ignorando que o morto era seu pai. Logo depois, ele chega a Tebas, desvenda o enigma da esfinge e salva a cidade. Como recompensa recebe a viúva do rei Laio (Jocasta, sua mãe) como esposa. É uma sensação incrível percebermos como todos esses fatos foram magistralmente interligados por Sófocles no interior da obra.

Finalmente, num terceiro momento, a ironia trágica se manifesta por meio de Édipo, que só depois de cego consegue enxergar a verdade. Antes disso, surge o sábio Tirésias, um cego servo de Apolo. No transcorrer da investigação que busca descobrir quem assassinou Laio, ele é convocado para ajudar no processo. Porém, Tirésias diz que Édipo é o algoz de Laio, mesmo este não acreditando e acusando o sábio de querer destroná-lo. Diante disso, Tirésias profetiza que quando Édipo tomar consciência do seu infortúnio irá cegar-se. Isso de fato ocorre! Após Édipo descobrir que matou seu pai e casou-se com sua mãe, ele entra no palácio e, encontrando Jocasta morta, tira-lhes uns broches e fura seus próprios olhos. Portanto, foi só quando ficou cego que Édipo conseguiu ver claramente e suportar a realidade que o cercava, isto é, compreender que sua vida foi traçada de desgraças.

À guisa de conclusão, posso dizer que tratei aqui apenas de alguns traços de ironia trágica, estes foram resumidos em três atos. Poderíamos tratar de diversos outros, como por exemplo, o fato de na história - Édipo, o assassino de Laio - ser o maior responsável por descobrir quem o matou. Essa e outras constatações deixam claro o quão grandiosa é a peça Édipo Rei, de Sófocles. Inegavelmente estamos falando de um grande clássico que permanece vivo após tantos séculos, uma vez que seu rico conteúdo gera debates inesgotáveis.

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