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Tribunal Superior Eleitoral: o julgamento e a arte

O ministro Gilmar Mendes, ao votar pela absolvição da chapa Dilma-Temer em 2017, lembrou Américo Pisca-Pisca, personagem de Monteiro Lobato em O reformador do mundo. Américo tinha por hábito colocar defeito nas coisas, queria transformar o mundo conforme entendia ser necessário. Entretanto, quando percebe por meio de um sonho que as mudanças que deseja podem levá-lo a um final negativo, ele decide ser melhor que “Fique tudo como está, que está tudo muito bem”. Assim, para Gilmar não se pode mudar as “leis naturais” da política, pois se corre o risco de que as coisas fiquem piores do que estão. Ele adota uma posição conservadora, se negando a reformar o mundo e escolhendo por mantê-lo exatamente como está. O que ele espera é que adotemos a visão de que as atuais regras políticas foram criadas por certa mente superior a quem não nos cabe se opor.

Em contraponto, a ministra Rosa Weber, ao votar pela cassação da chapa, prefere a canção de Torquato Neto, interpretada pela voz de Elis Regina. Em Louvação não se trata de um indivíduo isolado querendo fazer a sua vontade, mas de um poeta que recorda o seu povo e diz: “Louvando a quem bem merece / Deixo o que é ruim de lado”. Esse mesmo poeta também reconhece ser preciso ter esperança e, nesse sentido, “Para melhor esperar / Procede bem quem não para”. Ao contrário do seu colega ministro, Rosa ainda nutre a crença na possibilidade de uma alteração profunda do quadro sociopolítico. Para ela, é preciso acreditar e louvar aqueles que buscam transformar o mundo por meio de uma conduta exemplar de vida.

Entre o Américo Pisca-Pisca, lembrado por Gilmar Mendes, e o poeta de Louvação, citado por Rosa Weber, desejo muito mais essa segunda visão de mundo. Me integro ao louvor do poeta mesmo perdendo, pois não me conformo em viver “sem cisma de corrigir” os erros. E é exatamente por isso que prefiro sonhar com “O dia certo e preciso / De toda a gente cantar”.

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