Como venho de uma família humilde e com poucas condições financeiras, o meu acesso a leitura ocorreu tardiamente. Lembro que os meus familiares, especialmente a minha mãe e a minha avó, sempre me incentivaram a estudar. Por isso, mesmo não tendo quase nenhuma formação escolar, elas tiveram a preocupação de me colocar na escola o mais cedo possível. Porém, como não havia livros na minha casa, a leitura nos meus primeiros anos se resumiu aos textos que os professores disponibilizavam por meio de cópias no quadro-negro.
Somente na quarta série do Ensino Fundamental foi que ocorreu o meu primeiro encontro mais significativo com a leitura. Lembro-me bem do dia no qual a escola entregou para cada aluno uma coleção com cinco livros de diferentes gêneros (conto, poesia, novela, peça teatral e clássico adaptado). Mesmo tendo passado tantos anos, também me recordo de ter recebido essa coleção numa pequena caixa e de ter ficado extremamente animado com a possibilidade de ler tantas obras interessantes. Por isso, logo que se encerrou essa entrega, nós alunos conversávamos entre si e tentávamos trocar alguns livros, procurando na coleção do outro algo que nos interessava.
Partindo dessas lembranças, realizei algumas pesquisas enquanto escrevia esse texto e descobri que essa coleção se chamava “Literatura em minha casa”. Esses livros eram parte de um programa do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e tinham por objetivo desenvolver o gosto pela leitura oferecendo uma pequena biblioteca particular para os alunos. Pelo menos no que tange a minha trajetória, posso afirmar que esse programa educacional cumpriu muito bem sua função.
Entre as obras que recebi, duas delas me encantaram de maneira mais especial. A primeira foi a novela A droga da obediência, de Pedro Bandeira. Essa novela dava sequência as aventuras de um grupo de garotos chamado “Os Karas”. Gostei tanto da trama desenvolvida e da personalidade de cada um dos personagens que costumava ler esse livro nos lugares mais inusitados. Uma outra obra dessa coleção que também me cativou bastante foi a peça teatral O menino narigudo, de Walcyr Carrasco. Esse livro trazia a livre adaptação de uma clássica peça teatral francesa escrita por Edmond Rostand. Permeada de humor e ambientada no contexto da escola, lembro que essa linda versão do Walcyr Carrasco me causou boas gargalhadas.
Até hoje agradeço por esse programa de leitura do Ministério da Educação ter sido criado, pois ele permitiu que obras literárias de qualidade chegassem a minha escola na zona rural e fossem entregues a mim. Essas obras tiveram uma importância crucial no desenvolvimento do meu interesse pela leitura. Se atualmente realizo uma pesquisa de doutorado na área de Literatura Comparada, acredito que sem dúvida esse primeiro contato com a ficção escrita foi essencial para isso. Ele me permitiu enveredar ainda mais pelo mundo da imaginação, um mundo que eu apenas havia descoberto superficialmente por meio das histórias orais do meu avô e das brincadeiras inventadas debaixo de um cajueiro.
Já no ano seguinte ao recebimento dessa coleção, com a minha chegada aos anos finais do Ensino Fundamental, meu contato com a leitura voltou a se tornar mais escasso. Fui estudar numa escola municipal da zona urbana da minha cidade e lembro que nela havia uma pequena biblioteca misturada com a sala dos professores. Entretanto, nós alunos não éramos incentivados a frequentar aquele ambiente e ter contato com aqueles livros. Salvo engano, durante os quatro anos em que frequentei a escola, somente uma vez peguei um livro emprestado.
Posso até estar equivocado, mas olhando retrospectivamente, avalio que faltou por parte da escola e dos professores um maior incentivo para que nós alunos tivéssemos um contato significativo com a leitura. Entretanto, de minha parte, mantive esse contato por meio dos livros didáticos, uma vez que sempre lia os textos de diversos gêneros que compunham especialmente as páginas do livro de Língua Portuguesa. Eu nem mesmo esperava o professor abordar esses textos em sala de aula, pelo contrário, logo após receber o livro no início do ano, já ia aproveitando meu tempo livre para ler as entrevistas, os contos, os trechos de romances e as demais produções textuais.
Com a chegada ao Ensino Médio, as oportunidades de leitura voltaram a crescer, pois além do livro didático, pude ter acesso a uma vasta biblioteca da nova escola que ficava aberta durante o dia todo. Rapidamente fiz amizade com a bibliotecária que trabalhava lá e realizei o cadastro para poder pegar livros emprestados. Também lembro bem da primeira obra que li nessa biblioteca: foi Madame Bovary, clássico de Gustave Flaubert. Esse livro me encantou inicialmente por causa de sua capa luxuosa, ela tinha uma linda pintura ao centro. Apesar de ter muita dificuldade durante a leitura desse romance, consegui terminá-lo em poucos dias e compreendi a parte mais essencial da história, tendo ficado muito sensibilizado com a última cena narrada.
Nesse contexto, além de pegar livros com frequência nessa biblioteca, sempre que tinha horários de aula vagos (o que infelizmente ocorria com frequência), eu ia para lá conversar com a bibliotecária e vasculhar as estantes de livros. Foram três anos marcados por prazerosas leituras, nos quais eu me aproximei ainda mais da literatura e percebi que a continuidade dos meus estudos implicava em realizar uma graduação na área de Letras. Por isso, quando fui prestar vestibular em 2011, escolhi como primeira opção o curso de Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e suas Literaturas.
Assim, com o meu ingresso na graduação, os meus encontros com a literatura passaram a ser permanentes, pois pude ter contato com professores, colegas leitores, disciplinas e bibliografias das mais variadas. Conheci mais a fundo os gêneros textuais, os clássicos da literatura e também aqueles textos que foram marginalizados ao longo do tempo por causa do preconceito. Porém, mesmo estabelecendo a partir daí uma relação mais científica com a leitura, uma vez que me tornei especialista e pesquisador da área, procuro nunca perder aquele encanto infantil que tive ao me deparar com a possibilidade de ler os primeiros livros que recebi.
Eu também tenho maravilhosas lembranças da coleção de Pedro Bandeira e adorava fazer amizade com as bibliotecárias rsrs. Nossas vivências da infância influenciam tanto nossas escolhas quando adultos, né?
ResponderExcluirDemais, tudo que somos hoje tem um pezinho lá na infância, seja as coisas boas ou ruins. Por isso é tão importante cuidarmos bem de nossas crianças.
ExcluirPaulo, a sua história com os livros é bem bonita e inspiradora. Você escreve muito bem e transmite bastante sensibilidade com as palavras. Você é um exemplo vivo de que a educação salva! Lembro de uma propaganda que passava sempre nos intervalos da TV Brasil, lá nos anos 2000. Deitada na cama, uma menina segurava um livro e ia narrando as possibilidades que a leitura é capaz de proporcionar, enquanto imagens do espaço sideral e outras incríveis paisagens se projetavam na parede do quarto. Ela dizia no final: "Quem não lê não sabe o que está perdendo." Jamais esqueci aquele comercial. Meus parabéns, Paulo!
ResponderExcluirObrigado mesmo por essas palavras Riquelme. Os livros tavez sejam a único meio de libertação para nós, os não privilegiados.
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ResponderExcluirGrande Paulo! Muito legal tua história com a Literatura , meu amigo. E mais legal é ter partilhado muitas conversas , aflições, trabalhos e poder ter participado um pouco dessa história kkk. Sempre soube que irias longe e que serias um ótimo profissional, pois via em ti o amor pela leitura e pela escrita. Saudades...
Como disse lá no Facebook, muita saudade também Wagner. Espero que depois da pandemia a gente consiga se ver pessoalmente.
ExcluirParabéns Paulo! Emocionante seu depoimento... conhecer um pouco de sua trajetória de vida, sua relação com a literatura e perceber o grande profissional que se tornou, para mim é uma grande alegria.
ResponderExcluirE mais... um enorme privilégio aprender com você!
Valeu Ana, aos poucos vou contando mais coisas sobre mim (rs). É um prazer imenso ter chegado ao Manoel Dantas e encontrado pessoas comprometidas com a educação como você.
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