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Crônica da pandemia: A incerteza presente e o futuro sonhado

Tá, eu confesso! Nos primeiros dias após a decretação da quarentena imaginei que seria algo rápido e muito provisório. No máximo em algumas semanas, talvez um ou dois meses, tudo estaria resolvido e voltaríamos ao nosso cotidiano habitual. No entanto, eu não poderia estar mais enganado. A pandemia persiste no Brasil após quase 10 meses, o risco de um segunda onda é real e as perspectivas em torno da sonhada vacina ainda são incertas. Ao longo desse período pandêmico, a medida que fui entendo a gravidade do problema e as incertezas quanto ao futuro, busquei me adaptar a essa nova realidade e seguir em frente dentro do possível. 

Porém, a bem da verdade, não sou o tipo de pessoa que consegue sempre encontrar um lado positivo nos momentos de dificuldade. Por mais que tenhamos aprendido novas habilidades, conhecido formas inovadoras de estudar e ficado mais tempo em casa com nossas famílias, estamos ainda assim vivendo um ano extremamente trágico. De acordo com os subnotificados números oficiais, já temos mais de 165 mil mortos no Brasil por causa do Coronavírus. Nossa economia está com problemas, o desemprego vem aumentando e a irresponsabilidade dos nossos governantes só agrava o problema. Enfim, vivemos um ano de muitas perdas. De toda forma, não devemos querer esquecê-lo completamente, pois todo esse drama vivido tem muito a nos ensinar. 

Do ponto de vista pessoal, mesmo com todas as dificuldades, quando penso no que realizei durante esse período, me sinto satisfeito. Não sei se estou sendo autocomplacente, mas, apesar de quase não fazer exercício físico, acho que sobrevivi bem a esses meses. Assim como foi para a maioria das pessoas, talvez esse ano tenha sido o mais desafiador da minha vida, tanto em termos pessoais como em termos profissionais. Se bem que a separação entre esses dois espaços meio que inexistiram durante a pandemia, pois nossas casas se transformaram em escritório, sala de aula e tudo mais que fosse necessário. 

Para mim, o maior desafio que surgiu foi dar aulas remotas, especialmente porque assumi o cargo de professor na rede estadual de ensino poucos dias antes de ser decretado o distanciamento social. Nesse contexto, não tive a oportunidade de conhecer meus alunos pessoalmente. Sem tempo para adaptação, nas primeiras aulas online eu nada sabia sobre meus novos alunos. Uma verdadeira loucura! Em meio a essa realidade atribulada, nossos encontros pelo WhatsApp, pelo Classroom ou mesmo pelo Meet foram se tornando um hábito diário. O tempo passou, mas mesmo assim eu continuei sabendo pouco sobre aqueles indivíduos que acompanhavam as minhas aulas; pior, continuei sem nada saber sobre os muitos que não acompanhavam. Não tinham acesso a internet? Não sabiam das aulas remotas? Haviam desistido do ano letivo? 

Enfim, muitas incertezas foram permeando o ano, algumas iam sendo superadas por meio do decreto seguinte, da orientação vindoura, mas no geral foi e continua sendo uma verdadeira loucura, pouco ou nada sabemos sobre o futuro. O que sei é que aos poucos a minha mesa de almoço foi se transformando em birô de sala de aula. A lâmpada comprada para aclarar as videoconferências rapidamente queimou, mantendo a iluminação precária. Já o ventilador usado para melhorar o clima teve de ser desligado, pois seu barulho atrapalhava a comunicação nas aulas. 

A avaliação das atividades realizadas pelos estudantes também foi um desafio imenso. Como avaliar as respostas de um aluno que não acompanha as aulas? Como decifrar o texto escrito a lápis e enviado por meio de uma foto? Em suma, como julgar circunstâncias tão distintas, experiências tão singulares? Mais do que nunca foi necessário olhar para o envolvimento de cada um, tentando ser compreensivo sem ser permissivo. Espero sinceramente ter conseguido ser justo nesse processo. 

Além de tudo isso, outra dificuldade imposta por esse ano de 2020 foi a incompreensão em relação ao trabalho do professor. Não foi nada fácil ouvir pessoas e até mesmo jornais dizendo que nós professores não estávamos trabalhando. Como assim? Por acaso escolhemos viver essa pandemia? Ficamos em casa parados esperando ela acabar? Definitivamente não. Assim como todos, fomos vítimas dessa doença e tivemos de trabalhar dentro do que a realidade nos ofereceu. Obviamente, não foi o trabalho que gostaríamos, mas foi o possível. Ao longo das aulas virtuais, por vezes cansativas e até mesmo estressantes, restou rirmos de nós mesmos enquanto repetíamos diariamente expressões como: “estão me ouvindo?”, “acho que a internet caiu”, “tá travando!”, “tão vendo os slides?”, entre tantas outras. 

Durante esse tempo de pandemia comentei algumas vezes com alunos, familiares e amigos que ainda vamos demorar anos para entender esse gigantesco “meteoro” que nos atingiu. Pouca gente consegue ter a dimensão da transformação pela qual passamos. Escolas estão fechadas no mundo todo. Eventos esportivos voltaram, mas continuam sem público. Milhões de pessoas perderam familiares queridos. Diversas empresas faliram ou seguem funcionando em formato remoto. Máscara e álcool em gel se tornaram itens de primeira necessidade. O que quero dizer com tudo isso é o seguinte: mudamos profundamente nossos hábitos, ficamos mais tempo em casa do que fora dela; essas são mudanças profundas que só iremos compreender melhor nos próximos anos. 

Nesse sentido, uma das coisas que iremos perceber melhor a partir de 2021 é o aumento da nossa já vergonhosa desigualdade social. Quantos alunos abandonaram os estudos por causa dessa pandemia? Quantas pessoas entraram em depressão porque ficaram sem um familiar? Quantos indivíduos estão morando nas ruas porque perderam seu emprego? A verdade é que a pobreza está aumentando em nosso país e os próximos anos irão deixar isso bem claro. Como enfrentaremos esse problema agravado? Infelizmente, até o momento não se ouve muitas respostas por parte dos nossos políticos ou mesmo dos diversos setores da sociedade civil. 

Diante de todo esse cenário, no geral muito ruim, gostaria de encerrar essa crônica contando algumas pequenas alegrias. Não sou uma pessoa otimista, mas como tenho um apego enorme pela vida, penso que por vezes precisamos cultivar a esperança para seguir em frente. Nesse sentido, lembro que tive momentos de alegria e aprendizado proporcionados pela realização de vários cursos a distância. Devido a pandemia, eles foram ampliados, democratizando o acesso a pessoas que, como eu, não teriam a oportunidade de participar se eles fossem presenciais. 

Além disso, a sala de aula virtual também me reservou momentos felizes e construtivos. Aquela aula planejada que deu certo, aquele comentário interessante da aluna. O riso coletivo diante de uma pequena indiscrição, o compartilhamento de uma história do nosso cotidiano. Cada uma dessas pequenas coisinhas me fizeram perceber que havia vida pulsando atrás de cada tela, mesmo ela permanecendo fechada a maior parte do tempo. Foram esses momentos que fizeram o ano valer a pena, que deram sentido a toda nossa caminhada. 

Agora que esse 2020 pandêmico se aproxima do fim – mesmo sabendo que a Covid-19 continuará presente por um longo tempo – devemos parar, respirar fundo e recobrar a energia. O futuro continuará incerto, mas meu desejo é de que possamos transformar essa incerteza em criatividade, optando por caminhar em direção ao mundo sonhado.

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