Tenho um interesse muito especial por filmes que tratam do processo de amadurecimento experienciado por todos nós ainda nos primeiros anos de vida, os chamados coming of age. Por isso, foi com grande alegria que descobri recentemente Kapgang (Marcha Atlética, 2014), uma pequena joia cinematográfica escondida entre as listas infindáveis feitas por cinéfilos. Esse filme me lembrou bastante Du er Ikke Alene (1978), outra produção dinamarquesa que aborda a infância e a juventude a partir de uma perspectiva profundamente emotiva e realista.
Inicialmente, é preciso dizer que o filme dinamarquês Kapgang é baseado num romance autobiográfico publicado em 2011 por Morten Kirkskov. Tive a curiosidade de pesquisar sobre o livro e, aparentemente, ele não recebeu traduções para outros países. Isso é realmente uma pena, pois penso que essa história merece ser contada em diversos idiomas e conhecida por um público maior.
Em relação ao filme, logo no seu início, vemos o pequeno Martin (Villads Boye) sair do colégio e perceber algumas bandeiras a meio mastro, sinalizando que alguém havia morrido. Seu amigo Kim (Frederik Rasmussen) sugere que talvez seja uma pessoa velha e desconhecida, por isso Martin pega sua bicicleta e segue tranquilamente para casa ao som de uma música dançante (Love Hurts). Porém, os olhares das pessoas ao seu redor vão denunciando ao telespectador que algo não está no seu devido lugar.
Tão logo chega em casa, Martin é informado que sua mãe havia morrido. Até aquele momento ele sabia apenas que sua mãe estava com uma gripe. A verdadeira doença, no caso um câncer, havia sido omitido para poupá-lo do sofrimento. Diante da notícia, a reação de Martin é muito curiosa, pois ela não cai em nenhum clichê - seja a indiferença absoluta ou o desespero incontrolável. Pelo contrário, vemos ele reagir de maneira desajeitada a situação, demonstrando seus sentimentos de maneira bem mais contida do que seu pai e seu irmão mais velho. O pai de Martin chora em seus braços, enquanto que seu irmão se recusa a retirar o óculos escuros da mãe. Assim, cada um passa a viver o luto da sua própria forma.
Enquanto espera o sepultamento, Martin segue vivendo normalmente, como se aquele trauma abrupto não tivesse acontecido. Ele vai para escola, participa da aula de culinária e interage com os amigos. Além disso, também acompanha seus colegas esportistas e segue praticando a marcha atlética. Em relação a essa modalidade de atletismo, cabe pontuar o seguinte: ao contrário da cultura brasileira, na qual os movimentos da marcha atlética causam estranheza e por vezes preconceito, na pequena península dinamarquesa de Jylland, ela é vista com normalidade e os bons atletas são exaltados e reverenciados.
De toda forma, após esse período de aparente normalidade, Martin finalmente irá demonstrar seus sentimentos de dor e tristeza no cemitério. Em uma cena muito expressiva, acompanhamos sua tentativa de se jogar dentro do túmulo a fim de verificar se a mãe está realmente morta. Nesse momento, ao ser retirado do local aos gritos, temos então uma visão mais clara do amor que existia entre Martin e sua mãe.
É nesse contexto de perda definitiva que o telespectador passa a acompanhar com maiores detalhes o amadurecimento precoce de Martin. Com apenas 14 anos, ele se torna responsável por trazer a comida para casa ou mesmo cozinhá-la, cuidando do seu pai e do seu irmão. Ao mesmo tempo, fica responsável também por levar as roupas da mãe para serem queimadas, uma parte do processo de desapego que é realizado pela família.
No campo da sexualidade, Martin também é colocado diante de experiências novas. Por meio da personagem Kristine e do seu amigo Kim, ele passa a conhecer melhor o seu corpo e os seus desejos. Tudo é apresentado pelo diretor de maneira muito natural, mas é óbvio que tamanho naturalismo pode incomodar públicos mais conservadores. Esse processo de despertar sexual também ocorre de maneira acelerada, o que produz algumas sensações ruins no jovem Martin. Contudo, ao poucos, vemos as coisas se acomodarem. Por serem um pouco mais velhos, tanto Kristine como Kim tem a experiência necessária para guiar Martin por novos caminhos.
Numa das cenas mais icônicas do filme, Kristine explica a Martin como deve ser beijada, isto é, não de maneira rápida e afobada, mas sim de maneira calma e carinhosa. Em outra cena, Martin e seu amigo se masturbam e conversam de forma muito aberta sobre experiências homossexuais. Por fim, vale ressaltar também uma sequência na qual o trio flagra o pai de Martin se relacionando com uma outra mulher pouco tempo depois da morte da esposa. Essa descoberta leva a uma excelente reflexão sobre as nossas necessidades sexuais, o que culmina numa fala tranquila do pai informando aos filhos que irá manter contato com uma prostituta para satisfazer seus desejos.
Já próximo ao final do filme, acompanhamos Martin na sua festa de formatura. Enquanto rito de passagem, vemos ali ele sendo tratado como um adulto, tendo direito a beber e mesmo flertar com sua garota. Entretanto, aos poucos, é possível perceber que Martin foi forçado a amadurecer rápido demais. Ele está completamente esgotado diante do ritmo frenético dos últimos dias. Com isso, fica bêbado, vê Kristine transando com Kim e termina vomitando do lado de fora da casa. Só então é encontrado por sua nova professora. Ela é vizinha de Martin e, ao encontrá-lo naquela situação degradante, passa a tratá-lo como se fosse seu filho: leva-o para casa, dá banho e o coloca para dormir. Nesse momento, podemos reconhecer a criança que ainda vive dentro daquele garoto, isto é, o quanto Martin ainda necessita de cuidado e proteção. As semanas anteriores haviam sido extremamente exaustivas, sua transição da infância para a idade adulta foi feita sem o devido período de adaptação.
Entretanto, mesmo com todos os problemas, na última cena do longa-metragem o telespectador se depara com Martin vencendo todos os obstáculos causados pela morte da mãe e o consequente amadurecimento precoce. Rodeado da família e dos amigos, vemos ele cruzar em primeiro lugar e vencer uma importante corrida de marcha atlética. Essa vitória no atletismo é a metáfora perfeita para simbolizar a superação de Martin diante de um período tão difícil. Como telespectadores, podemos terminar o filme se sentindo gratos por acompanhar uma experiência de vida tão significativa como essa tida por Martin.
O diretor Niels Arden Oplev, conhecido por dirigir a primeira parte da trilogia Millennium (Os Homens que não Amavam as Mulheres, 2009), merece todo o reconhecimento por ter realizado essa excelente adaptação. Além da boa condução, Oplev também reuniu um grande time de atores e atrizes. Quem assistiu a ótima série política Borgen vai reencontrar em Kapgang Sidse Knudsen interpretando a personagem Lizzy. Além dela, Johan Asaek e Kristian Halken também aparecem no filme. Já para quem assistiu a série Rita, é possível ver no filme, além do Frederik Rasmussen, a inconfundível Lise Baastrup interpretando uma professora grávida.
Enfim, gostaria de encerrar esse comentário destacando todo o meu entusiasmo ao ver pessoas que trabalharam em Kapgang fazendo tanto sucesso em séries da Netflix. Espero que isso leve mais gente a conhecer o filme e a se emocionar com a história assim como eu me emocionei. Apesar de pouco conhecido, especialmente aqui no Brasil, Kapgang é sem dúvida um dos melhores coming of age já produzidos.
Comentários
Postar um comentário